Um dia desses eu assisti “A noite que mudou o pop”, documentário com os bastidores da gravação de We Are The World - o projeto USA For Africa criado em 1985 para arrecadar fundos para tentar combater a fome no continente africano.
Alguns dos maiores nomes da música pop da época se juntaram sob a batuta de Quincy Jones para gravar o single. Ali estavam, entre outras, estrelas como Michael Jackson, Lionel Richie, Diana Ross, Stevie Wonder, Tina Turner, Ray Charles, Cyndi Lauper e Bob Dylan.
O produtor tinha a difícil missão de comandar mais de 40 artistas em uma única noite, então claro que a experiência técnica era importante, mas mais do que isso o jogo de cintura de Jones para lidar com a personalidade de astros de diferentes gerações e de sucesso indiscutível.
Quincy Jones colocou um papel escrito à mão na porta do estúdio: Check your ego at the door, ou seja, deixe seu ego na porta.
O quê se vê ali é um monte de, usando um termo de hoje mais do que banalizado, celebridades do mais alto escalão da música de então sendo gente como a gente.
É curioso ver alguns bocejando, outros felizes quando alguém fala que vai pedir comida, momentos de insegurança e até inocência; humano, demasiado humano, diria o bigodudo que sempre tenho que jogar o nome no Google para escrever correto.
Ao assistir fiquei imaginando como seria nos dias de hoje reunir um time de peso no mesmo ambiente e acho que não teria cartaz do Quincy Jones que colocasse todo mundo no mesmo patamar. A não ser que o cartaz dissesse: deixe seu celular do lado de fora, mas aí a galera ficaria mais entediada do que o Bob Dylan parecia estar - fiquei pensando que na gravação eu seria algo entre ele, completamente deslocado, e o Prince, que não foi.
Vivemos um momento de hiperexposição onde tudo é compartilhado quase que 24 horas e em tempo real; a Terra redonda o mundo gira sob o domínio da Meta com usuários trabalhando de graça para o Mark Zuckerberg e produzindo conteúdo já falei que de graça né online full time. Desse modo, ao invés de ser lembrado para sempre como foi o We Are The World, talvez a ação teria a efemeridade de uma porção de stories.
As pessoas, celebridades ou anônimas, estão o tempo todo performando e alimentando suas Redes, de modo que parece impraticável que pudessem deixar a obsessão da vida online de lado - talvez se despindo de seus egos mesmo.
Por falar em despir, cabe lembrar o belga Martin Margiela, que além de poucos registros de sua face, a ponto dele não entrar no final do desfile e muitas vezes as modelos desfilarem anonimamente, o designer de moda ainda criou uma etiqueta sem logotipo onde no lugar há uma porção de números.
Fiz uma busca no Google para tentar entender a numeração da Maison Martin Margiela e…
…nem tudo parece fazer sentido - mas e quem disse que tudo precisa fazer, né?!
Por uma das raras imagens de Margiela encontradas na internet dá para ver que ele também tem bom gosto musical - Blah-Blah-Blah saiu em 1986 e quase todas as músicas são uma parceria entre Iggy Pop e David Bowie.
O que chama atenção é o contraste do glamour do Bowie com o uniforme usado por Pop desde os anos 1960 quando estava à frente dos Stooges.
Até hoje, aos 76 anos de idade, ele sobe ao palco somente de calça jeans e sem camiseta.
Enquanto Lobão [queeeem?] faz ego search no finado Twitter, Iggy Pop, literalmente, se despe de seu ego há décadas, e olha que ele nem foi convidado para o We Are The World.
Já com o texto rascunhado na cabeça, ao entrar no elevador fui dar uma conferida no visual, nada muito sério, uma olhadela de leve e, AAAAAAAAAH, inclusive, precisamos falar sobre a quantidade de “humoristas” [note as aspas pfvr] fazendo transplante capilar.
Curioso como esses “humoristas” orgulhosos paladinos do politicamente incorreto acham que alguns crimes que cometem é “mimimi” [diga-me o que você considera isto e te direi o que és: geralmente racista, machista, homofóbico, transfóbico, gordofóbico e por aí vai], mas não aguentam uns fios de cabelo migrando pro ralo do chuveiro, né?! E o medo de postar uma #selfie e virar piada, como fica?!
Enfim, abri a porta e na busca pelo espelho o elevador me mandou uma mensagem subliminar que alugou um triplex na minha cabeça: cuidado, espelho atrás.
Seria um aviso ao meu ego? Uma indireta quanto à minha estética duvidosa?! Teria sido o Quincy Jones o autor do aviso?! Iggy Pop me alertando que não preciso dar aquele confere no visual?! Quiçá Bafinha Rastos fazendo chacota da minha cara?!
Bom, sei lá, talvez às vezes a gente precise deixar o espelho de lado para poder refletir melhor. Afinal de contas, como Quincy Jones ensinou em We Are The World: deixe seu ego na porta. E eu peço licença para fazer uma adaptação: deixe seu ego offline, ou se preferir, coloque seu ego em modo avião.
ps* O Prince até disse que iria ao We Are The World se fosse para gravar uma guitarra numa sala separada e tal, mas com o argumento de que era para ser só voz e todos juntos, ele não apareceu. #TeEntendoPrince #TamoJuntoOartistaAnteriormenteConhecidoComoPrince
ps** Me irrita que eu saiba escrever Mark Zuckerberg sem consultar o Google e Friedrich Nietzsche não kkkrying
achei um texto muito divertido e muito interessante sob o ponto de vista filosófico para nós pessoas que produzimos textos sobre o horror de colocar as nossas vidas na internet sendo que, sem isso, a gente não é lido (eu jamais faria uma crítica à minha categoria, deixo isso bem claro!). concordo com a impossibilidade de termos um we are the world (até porque we are not the world AT ALL né), no mundo influencer isso deve alugar uma quadra de triplex. eu, mera mortal, já fico pensando como que vou jogar todas as minhas experiências edificantes (finge que coloquei um tachado no edificante) em forma de texto para conseguir me conectar com um público leitor e criar a ilusão de que sou amada por um talento duvidoso que é uma válvula de escape do capitalismo e da solidão.
ufa!
tudo isso pra dizer que me diverti muito com esse clichê inédito!
Esse lance do Nietzsche me pega também. A banca do meu tcc pontuou que eu havia escrito o nome do querido errado na única citação. Sobre o doc, não esperava esse mimo da Netflix.